“She wants to know if I love her, that’s all anyone wants from anyone else, not love itself but the knowledge that love is there, like new batteries in the flashlight in the emergency kit in the hall closet.” - Jonathan Safran Foer, Extremely loud & Incredibly close.
Você olhou pra mim e fez cara de quem já me conhecia. De cima à baixo, como quem faz inspeção num imóvel onde morou quando era criança; móveis diferentes, mas o mesmo cheiro de lugar conhecido. Fazia tantos anos que eu não olhava pra você também, mas a verdade é que eu não senti saudade de você nem por um segundo nos últimos quinhentos anos. Nada.
Saí dali com aquela sensação estranha de ter mergulhado a ponta do dedo num copo de passado e enfiado na boca rápido, descobrindo numa lambida só que algumas coisas quando amargam não voltam a ser doce depois de um período de abstinência. Passei esbarrando por algumas pessoas, fui quase atropelada por alguns carros, as ruas ficaram um pouco tortas de uma hora pra outra e meu equilíbrio que andava tão em dia comigo resolveu falhar.
Esse é o problema de gostar das pessoas. Pessoas fodem sua vida, partem seu coração, comem outras pessoas quando deviam estar só comendo você. Pessoas têm passados de histórias de amor que não foram com você e, no fundo, a gente sempre sabe que a gente também tem o nosso e faz parte do passado comprometedor de alguém. E pior, até onde vale à pena lutar com garras afiadas contra o passado de quem a gente ama, ou esconder com todos os recursos de privacidade o que já aconteceu na nossa própria vida?
O problema do meu ciúme é que ele é tão grande que acaba ficando sem foco. Meu ciúme não tem nome porque eu consigo dar variados nomes à ele todos os dias, em todas as suas ações eu consigo achar alguém que está ali, bem escondidinho no canto do seu cérebro que administra todas as lembranças que foram feitas antes de eu chegar. Meu ciúme é tão imbecil, que eu às vezes penso que se eu abandonar você eu posso finalmente me tornar uma lembrança grossa que também caber (e ainda roubar o lugar de algumas pessoas) nessa parcela de massa incefálica que eu ainda não posso entrar. Se eu fosse passado e não presente, seria eu que ia importunar, não quem estaria sendo importunada.
Daí eu fico inspecionando meu passado de perto todos os dias atrás da moita, que é pra eu me lembrar que eu também tenho um e que, se você resolvesse futucar aqui e ali o tempo todo (como faço eu), você também sentiria ciúme de mim. Mas aí me vem sempre aquela outra pergunta: será que você não sente? Será que enquanto eu durmo você não pega o meu celular e lê todas as minhas mensagens na vontade de achar alguma coisa que explique o porquê eu vigio tão de perto cada um dos seus suspiros mais longos? Ou será que só sou eu mesmo que sou a louca deste relacionamento e não entendo que depois de tanto tempo não resolve mais ter ciúme, ou se acredita no que se tem ou se vai embora e pronto?
Vocês me olharam com caras conhecidas porque, afinal, vocês supunham mesmo me conhecer muito bem. Um beijinho aqui, há anos atrás, algum segredo que naquela época era muito importante, mas que hoje eu nem me lembro mais. Talvez você conheça o nome da minha música preferida e talvez saiba quem é minha melhor amiga e qual é o time do meu pai. Talvez eu tenha um dia dito estar apaixonada por você, talvez eu tenha chorado algumas noites – ou até muitas – porque você me traiu, ou porque me deixou, ou porque não quis me namorar.
E você, amor, você me olha fundo porque conhece o meu bem e o meu mal. Enquanto os outros guardam de mim memórias pequenas, você me reconhece nos meus gestos mais comuns e me enfrenta no meio dos meus devaneios, no meio dos meus ataques de morte, das minhas tentativas de guerra contra todos os demônios que habitam minha cabeça porque ela é sempre cheia de tantas coisas, funcionando muito mais rapido e atribuladamente do que a das pessoas normais. Eu tenho tanto medo de um dia uma mulher normal, com cabelo liso, roupas iguais às de todo mundo e senso de humor medíocre te leve de mim. Porque essas pessoas que são só pessoas – realmente iguais à seus iguais – são normalmente mais fáceis de se conviver. Porque eu sei que você acha a minha loucura bonita e até meio poética, mas eu sei também que você já achou tudo isso muito mais lírico do que acha hoje e que, um dia, pode de verdade cansar de tanto surto.
Eu disse que não senti nada por ele, mas é uma meia verdade, já que não é exatamente uma mentira. Eu senti nada, mas tem dias que eu busco em todos aquilo que você não me dá mais porque já me tem do seu lado há muito tempo. E eles me dão aos montes, mas na hora H eu recuso porque nada do que eles possam me dar vai ser você. E a verdade mais clara de todas as meias que eu tenho dito ao longo desse texto todo é que essas minhas ações repetidas durante tantos anos, nada mais são do que uma bandeira estendida por detrás da trincheira, pedindo trégua e tentando chamar sua atenção.
Na nossa guerra diária de passados, de outros amores, de decisões, de foco, de fica, de fode, de fato, não é a vontade de ganhar de você que me move, mas sim o medo de te perder. A qualquer hora sem aviso, para qualquer uma dessas coisas.
Meu ciúme é tanto que eu acabo olhando muito para o meu passado. E eu sei que sou louca – você me lembra todos os dias e eu também tenho consciência – , mas se eu encontrasse o tão falado gênio da lâmpada hoje, o pedido seria simples e sim, insano: um mundo sem passado, pra mim e pra você.
Rani Ghazzaoui
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Meu comentário:
(Não sou de reproduzir material de outras pessoas aqui. Mas essa autora e esse texto em especial dizem muito sobre mim. Há muitas coisas que eu ainda preciso aprender nessa vida, e uma delas é controlar a minha vontade de ter controle sobre tudo, de investigar coisas que já foram, de chorar as descobertas, de sofrer por coisas que eu simplesmente não posso reverter. Minhas dores sou eu mesma quem causo.)