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quinta-feira, 5 de junho de 2008

Eu sou lúcida na minha loucura, permanente na minha inconstância, irrequieta na minha comodidade. Pinto a realidade com alguns sonhos: enxerto sonhos em cenas reais. Choro lágrimas de rir e quando choro para valer, não derramo uma só lágrima. Amo mais do que posso, e por medo, sempre menos do que sou capaz. Busco pelo prazer da paisagem e raramente pela alegre frustração da chegada. Quando me entrego, me atiro, e quando recuo não volto. Mas não me leve a sério: sei que nada é definitivo. Nem eu nem ou que penso que eu sou. Nem nós, nem o que a gente pensa que tem. Gosto das noites porque me nutrem na insônia, embora os dias me iluminem quando nasce o sol. Trabalho sem salário e não entendo de economizar. Nem energia. Esbanjo-me até quando não devo, e vezes sem conta, devo mais do que ganho. Não acredito em duendes, bruxas, fadas ou feitiços. Nem vou à missa. Mas faço simpatia, rezo pra algum anjo de plantão e enventualmente, mascaro minha fé no deus do otimismo forçado. Quando é possível, debocho. Quando é permitido, duvido. Não passo da conta ao beber porque só me aceito sóbria; não fumo pra não enganar a ansiedade e não aposto em jogos de cartas marcadas. Não tomo café da manhã, muitas vezes não almoço, vivo de dieta e penso mais do que falo. E falo muito. Nem sempre o que você quer saber. Nem sempre o que você quer ouvir. Disso eu sei. Gosto sim de cara lavada - mas me sinto bem com um traço preto no olhar. Pés num chinelo, nutro uma estranha paixão por camisetas velhas e sinto falta de uma tatoo no pé esquerdo. Mas dentro de mim, há uma mulher que gosta de perfumes e cremes caros, sedas importadas, sapatos de cristal e brilho no olhar, que travestida por toques e cheiros, se seduz e se identifica com o "bom" da vida. Se notar qualquer constrangimento, não repare: eu não tenho pudores, mas não raro, sofro de timidez. E note bem: não sou agressiva. Sou defensiva. Impaciente onde você vê ousadia. Falta de coragem onde você vê sensatez. Mesmo assim, sempre pinta um momento qualquer quando me esqueço de todos os conselhos e sigo caminhos escuros. Estranhos desertos. E, ignorando todas as regras, todas as armadilhas dessa vida urbana, dessa violência cotidiana: se você me assalta, eu reajo. (Clarice Lispector)

Um comentário:

Puxe a poltrona e fique a vontade.